Borges, Simon e a Mente Programada: Um Encontro entre Literatura e Inteligência Artificial

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Em 1970, Jorge Luis Borges, então diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, recebeu Herbert Simon, economista, psicólogo e um dos fundadores da inteligência artificial. Simon estava em Buenos Aires para dar palestras sobre teoria de sistemas, mas tinha um pedido pessoal: queria conhecer o autor de A Biblioteca de Babel, obra que o fascinava.

O encontro entre os dois rapidamente saiu da cordialidade e foi direto ao ponto: o que nos torna humanos? Borges, com sua ironia habitual, provocou Simon com questões sobre livre-arbítrio, comportamento mecânico e o papel da história na formação do indivíduo. Simon respondeu com a visão de quem estudava a mente como um sistema: segundo ele, somos programas ambulantes, moldados por experiências acumuladas ao longo da vida.

Em certo momento da conversa, Simon afirma: “Você escolhe, mas é o seu passado que escolhe por você.” A frase resume bem o argumento central da compatibilidade entre determinismo e escolha pessoal, a ideia de que, mesmo sendo moldados por causas anteriores, ainda operamos dentro de um campo de decisão. Para ele, agir é, em última instância, seguir uma lógica de programação interna. Borges rebate, questiona, leva o diálogo à beira da metafísica, mas não desmonta a tese.

É inevitável, hoje, reler esse encontro sob a ótica da inteligência artificial generativa. Se tudo o que somos pode ser compreendido como código, de hábitos a memória e linguagem, faz sentido perguntar: e se treinássemos um modelo com tudo o que Borges leu, escreveu e sentiu? Teríamos de volta Borges? Ou apenas um reflexo de sua programação, uma réplica sem subjetividade?

Essa discussão, que poderia parecer abstrata décadas atrás, hoje é concreta. Sistemas baseados em grandes modelos de linguagem já conseguem simular estilos, raciocínios e até interações com figuras históricas. Isso abre possibilidades fascinantes, inclusive para a preservação e reinterpretação de legados humanos. Mas também traz dilemas: uma simulação é suficiente para representar uma consciência? Qual é o limite entre memória e identidade?

O diálogo entre Borges e Simon é um raro exemplo de uma conversa entre ciências humanas e ciências exatas em pé de igualdade. Eles não buscavam convencer um ao outro, mas explorar juntos os limites do que é pensar, agir e existir. Em tempos de especialização extrema e polarização entre áreas, esse tipo de conversa faz falta.

Talvez a principal lição do encontro não seja sobre o que define a mente, mas sobre como conduzir o pensamento: com curiosidade, sem medo de cruzar fronteiras disciplinares. Porque no fundo, como Simon diz, cada escolha que fazemos carrega o peso — e o código — do que veio antes. Mas ainda assim, é nossa.

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Bruno Rodrigues
Por Bruno Rodrigues